sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Do outro lado da rua


Vinha o senhor Abelardo com seu andar todo torto caminhando na calçada. Era por volta das 18:30 de domingo quando todos se recolheram da mesa naquela tarde para assistir ao programa Domingão e o quadro Dança dos Artistas. Minha família e vizinhos não perdiam a competição entre as celebridades.
Eu e meu cachorrinho Jolie, ficamos sentados ali mesmo, no lugar onde almocei o frango assado que minha mãe fez. Tia Mafalda trouxe a torta de palmito que eu adoro, e nosso vizinho, o senhor Honorato, junto à esposa, trouxeram o pudim e o vinho, que meu pai degustava e rodando a taça dizia que o vinho é a “bebida dos deuses”. Almoçávamos fora todos os domingos. Que eu digo fora, é na calçada de casa mesmo.
Sorvete de chocolate e creme, completava meu domingo.
Mas algo aconteceu naquele final de tarde. E mais outros domingos se sucederam com o mesmo fato. Tentei eu mesma resolver, pois se comentasse com alguém o que via, apenas diriam que eu estava ficando louca.
Nem com o senhor Abelardo eu comentei, mas para minha surpresa percebi que ele viu o que também vi durante vários finais de tardes de domingo.
Mas só de domingo? E sempre àquela hora em que todos se recolhiam para dentro de suas casas? Estranhei.
É a respeito de um salão de danças que existia numa velha casa agora meio que abandonada do outro lado da rua, enfrente a minha casa. Encontrava -se fechada por mais de quinze anos.
Minha mãe, por muitas vezes recolheu correspondências como cartas, boletos e extratos bancários, contas de água e luz, jornais e panfletos de ofertas de supermercado que jogavam quase toda a semana.
Ela dizia:
Eu recolho para não parecer uma casa abandonada.
Mas é uma casa abandonada, mãe. Ninguém entra nem sai há anos. – dizendo isso para que eu mesma pudesse me convencer do contrário, porque o que eu via nesse momento, a casa não parecia abandonada.
Mas voltando à mesa onde todos se retiraram e eu ficando só com meu cachorrinho Jolie, assim que o senhor Abelardo passou, fui à casa ver com meus próprios olhos, mais de pertinho mesmo, pois não acreditava no que via.
Pessoas chegavam ao portão da casa em todas as vezes, dançando, mas agora mais de perto, pude ouvir a música tocada ao fundo que me pareceu ser um charleston, onde assim fez sentido todo aquele movimento agitado dos dançarinos, que pareciam mais eram suas roupas estarem cheias de pulgas. Falavam e gesticulavam o tempo todo e discutiam algo.
Correndo para casa, me joguei no sofá. Jolie veio atrás de mim e quase tropecei nele.
- Vem Jolie, já pra casa – ordenei.

Fiquei apavorada.
Minha mãe e tia Mafalda torcendo para a atriz da novela das 6 horas ficar em primeiro lugar e levar um carro como prêmio, disse a mim mesma:
- Porquê não fiquei em casa?

Segunda – feira precisaria de coragem para ficar pronta de manhãzinha, para que quando a van viesse me buscar para ir à escola, era meu único pensamento.
Café tomado e um rápido beijo da minha mãe quando passou pelo corredor de volta à cama dela para dormir mais uns minutinhos. Esperei a van chegar sentada no jardim. Não poderia me atrasar, senão a dona Natália a dona da van - apressadinha do jeito que ela é - buzinaria sem parar, acordando todo mundo e daí viria a reclamação dos vizinhos.
Surge o senhor Abelardo, cabelo molhado, de banho tomado carregando sua marmita embrulhada num pano de prato, marmita essa feita pela cozinheira do bar da esquina – pressuposto - disposto a trabalhar, após anos estar desempregado.
- O coitado não fica em emprego nenhum por causa da bebida - comentou minha mãe uma vez.
Cumprimentei o senhor Abelardo com um breve sorriso:
- Bom dia, senhor Abelardo, tudo bem?
- Bom dia menina.
- Tô eu aqui esperando a van da escola.
- Você viu a festança de ontem? “Tava” de arromba.
Quando eu ouvi ele dizer isso, até tossi! Dei risada quando ouvi a palavra “arromba”, tão antiga aos meus ouvidos….
- De arromba, eu não sei mas o almoço de domingo estava gostoso.
- Não é do almoço que estou falando, é da casa enfrente à sua – apontando para o outro lado da rua.
- Como assim? - me fazendo de desentendida - essa casa está fechada há anos.
- Imagina fechada! E que festança – repetiu.
A van chegou e dei um breve tchau.
- Depois nos falamos senhor Abelardo.
- Bom estudo, menina.
De fato toda essa conversa me deixou intrigada, mas fiquei para entender essa conversa no dia seguinte quando o senhor Abelardo passaria pela manhã.
- Bom dia senhor Abelardo, gostaria de falar sobre a conversa de ontem.
- Bom dia Deise.
- O que o senhor vê é o que eu vejo dentro daquela casa? - perguntei.
- O que você vê naquela casa?
- Pessoas que falam e dançam parecendo se divertir – era o que eu achava.
- Sim, mas reparei que não passam do portão pra rua. Ficam sempre dentro da casa.
- É, o portão parece estar emperrado, então voltam lá pra dentro. Então disse:
- Fantasmas.
- Do outro lado da rua? - admirou - se.
- Esta casa encontra – se fechada há anos. Os donos não moram mais aí. Minha mãe me contou que nesta casa existia um salão de dança, mas tem uns quinze anos. Morreram pessoas aí dentro por causa de uma explosão num botijão de gás – ao dizer isso, engoli seco.
- O que você está me dizendo, menina...
- É isso, morreram o professor e a esposa que viviam e davam aulas de dança e alguns alunos. Minha mãe vira e mexe ouvia o som do charleston, sabe aquela dança da década de 20: tã tã tã tã – e gesticulando os dedos para o ar para que ele entendesse o ritmo da dança do qual eu falava.
- Tá, tá menina. E você acredita em fantasmas?
- Eu, bem... eu não? – respondi com ar de cínica que só eu sei fazer, achando que ele pudesse pensar que sou uma louca, apesar de ele ver o que eu também via.
Bom, acreditando ou não em fantasmas, pensei em tirar essa história a limpo.
Como? Indo no próximo domingo até o portão da casa, depois que todos se recolhessem para assistir a Dança dos Artistas no programa Domingão.
Emfim chegou o dia. Atravessei para o outro lado da rua e dei de cara com o que eu supunha serem fantasmas.
Com o som alto tocando o charleston, aproximaram – se do portão. De pronto e era essa a minha intenção, foi abrir o portão. Todo enferrujado, se via que a lingueta da fechadura estava emperrada, me vi desesperada mas para minha surpresa, o portão se abriu sem que eu fizesse o mínimo esforço.
Lembrei das várias placas de imobiliárias onde ficaram penduradas na fachada da casa e os dizeres de vende – se. Porém a casa nunca foi vendida ou alugada, até onde eu soubesse.
Nosso bairro crescia com empreendimentos de construtoras famosas como a Roberto Dias, mas voltando ao que interessa, ao portão nesse caso:
Consegui, que alívio – dizendo em voz alta.
Não acreditava.
Ao som de charleston, em seus trajes de típicos da época, os dançarinos pareciam agora mais felizes com o que eu acabara de fazer.
Um dos dançarinos passando por mim, me disse:
Obrigado Deise, em nome de todos. Esperamos muitos até você chegar para abrir o portão.
QUASE DESMAIEI... ao ouvir o que ele disse. Então era isso, estavam presos ali à espera de que um dia eu abrisse aquele portão, apenas um simples gesto de atravessar e ir para o outro lado da rua. ME SENTI CULPADA, naquele momento.
- Agora seremos eternos e dançaremos pelo resto de nossas vidas – completou o fantasma.
Acompanhei os movimentos num frenesi em que estavam, até chegarem ao meio da rua e sumirem.
Foi quando eu saí correndo trombando com o senhor Abelardo:
- Onde vai com tanta pressa?
- O senhor viu senhor Abelardo o que eu vi?
- Vi e é por isso que eu bebo – disse dando altas gargalhadas.
Eu, não achei graça nenhuma.
Assim chegou a segunda – feira. Da janela do meu quarto ouvi um barulho e fui olhar. Era um trator que veio demolir a casa do outro lado da rua para construir mais um prédio no nosso bairro.

E não paro por aqui: naquele domingo cheguei em casa, sentei no sofá e minha mãe estava com a tia Mafalda torcendo pela atriz ganhar o carro como prêmio.
- O que é que ela dançou para levar o prêmio?
- Acho que charleston...

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