segunda-feira, 10 de abril de 2017

Relógio de corda

Domingo pela manhã resolvi dar uma caminhada pelo bairro e passar no supermercado para comprar uma mistura para o almoço. A gente sabe que dentro de um supermercado, as horas voam. Eu estava sem relógio e perdi a noção do tempo.
A verdade é que as pessoas não usam mais relógios hoje em dia. Você anda pela rua querendo saber das horas, buscando alguém que esteja usando um relógio, e não aparece ninguém. Chego a sentir ansiedade até que surge bem na hora, alguém usando um relógio de pulso.
Por sorte, na saída do supermercado vinha em minha direção, um casal muito simpático, afinal ambos usavam relógios e eu queria saber das horas.  
Ele ostentava um relógio digital e ela usava um relógio todo em dourado, possivelmente de ouro.
Perguntei para a moça, as horas.
Retirando o celular de um dos bolsos da calça jeans, logo respondeu:
 ̶  São onze e vinte.
Surpreso com o gesto dela, não me contive e falei:
 ̶  Você tem um lindo relógio e achei que você fosse me dar as horas pelo relógio e não pelas horas do celular.
Ela ficou tão sem graça... e surpresa também.
Então demos risadas, foi quando comecei a contar sobre o relógio do meu avô Jarbas.
 ̶  Clóvis, está na hora - ele dizia para mim.
Era a hora de dar corda no relógio.   
Puxando o longo bigode, vovô discursava diante daquele relógio e só parava de falar quando vó Lola gritava da cozinha para que fôssemos almoçar.
E era assim todas as vezes que eu chegava da escola. Passava as tardes na casa dos meus avós, até que meus pais viessem me buscar quase ao anoitecer.
Meus pais trabalhavam na pequena padaria que foi do meu avô que agora aposentado, deixou de herança para a família.
Fui crescendo dentro daquela padaria ajudando meus pais e meus pais colaborando com meus estudos na faculdade. Entrei em medicina tornando – me, um médico com especialização em cardiologia.
Meu pai veio a faleceu e nesta época eu estava com trinta e sete anos de idade e havia formado uma linda família. Até hoje sinto remorso por não ter acudido meu pai a tempo. Eu sendo um médico cardiologista, nada puder fazer. A vida como ela é, costumava dizer uma velha tia.
Na sala de jantar, vovô Jarbas experimentava o pedaço de papel que havia acabado de colar no fundo da caixa do relógio. Deveria ficar bem colado para que não se soltasse.
Eu tive em certa ocasião uma vontade enorme de saber o que era aquilo, mas acontece que vovô nem deixava que eu chegasse perto do relógio quanto mais pega – lo na mão.
Após a morte de meu pai, minha mãe vendeu a padaria, deixei o apartamento onde morávamos e fomos morar todos juntos na casa de meus avós. Éramos eu, minha esposa e meus dois filhos Leno e Dina, minha mãe e meus avós, todos morando naquele casarão só para cuidar do vô Jarbas, que adoeceu e veio a falecer em seguida, ficando mamãe para cuidar da vó Lola.
Como cardiologista, comparei o relógio a um coração. No relógio você dá corda para funcionar e no coração a corda, é viver momentos felizes, cheios de emoção. E assim vivíamos felizes naquela casa, tendo o relógio como testemunha.
Vó Lola faleceu e mamãe mesmo cansada, resolveu largar tudo, para viajar pelo mundo afora.
Assim começou a briga para ver com quem ficaria a casa. Saí de fininho.
Voltei a morar no antigo apartamento, que ainda bem, não o desfiz.
A casa continuou fechada por mais de cinco anos, e sem que ninguém tivesse tempo para cuidar dela, deteriorava - se com cupins e umidade nas paredes, dentro e fora da casa.
Após uma cirurgia, saí do hospital decidido a passar pela casa para recordar os velhos tempos em que fui feliz morando lá.
As chaves do portão e da porta nunca saíram do molho de chaves que eu sempre carrego comigo. A casa cheirava a mofo e assim que eu entrei na sala lá estava ele, o relógio de corda do meu avô. Meu coração disparou ao vê – lo. Era chegada a vez de eu mexer no relógio. Na hora me senti como uma criança quando recebe um brinquedo. Era preciso dar a corda para que o relógio voltasse a funcionar.
 ̶  Clóvis, está na hora – disse a mim mesmo.
Abri com cuidado a pequena portinha de vidro que guardava as horas - como dizia vovô - e a chave para dar a corda parecia nunca ter saído do lugar.
Então eu vi que o papel colado no fundo da caixa do relógio, tratava-se de um cartão de visita com um nome e endereço de um escritório de advocacia. Tirando o cartão dali com cuidado para não rasgar, pude ver melhor.
           Saindo às pressas, coloquei o relógio no lugar esquecendo-me de dar corda nele. A caminho de casa, liguei do celular para o tal número.
No dia seguinte estava em Avaré. O filho do Dr. Rafael Bastos me aguardava. Relembrando as histórias do pai dele, vividas com meu falecido avô, fomos interrompidos com a presença da secretária carregando uma pasta com uma porção de documentos. Havia ali um testamento redigido de próprio punho pelo meu avô, que descrevia uma casa situada à Rua das Rosas na Vila Mariana. Era a casa dos meus falecidos avós. Lendo o documento disse – me o advogado, que a casa foi deixada como herança para Clóvis Junqueira.
De volta a São Paulo, esclareci aos pretenciosos herdeiros, que aquela casa, havia sido deixada para mim.
 ̶  A casa, olha só, acabei vendendo e o relógio de corda ficou como relíquia, e quer saber? Funciona até hoje. O papo está bom, mas preciso ir.
Obrigada por ouvirem esta história que me trouxe boas recordações.
 ̶  Mas afinal, que horas são?
A moça olhando no relógio dourado, respondeu:
 ̶  São vinte para meio – dia.