terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Florisbela



 Era uma vez uma menina
que quando alguém tossia
ela dizia:
Que nojo!

Ou quando alguém
espirrava,
ela falava:
Que nojo!

Até que um dia, ela encontrou um príncipe encantado.

Assim que o príncipe
soltava um atchim,
ela pegava o lenço
para ele limpar o nariz.

Ou quando o príncipe
tomava um prato de sopa,
ela pegava um guardanapo
para ele limpar a boca.

E assim ela esqueceu de dizer: “Que nojo!” pra tudo.
Sabe porquê? Por que ela se apaixonou.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Palavração

Participação com a historinha: "Correu... bateu... morreu..." 
que poderá ser lida na postagem de 25/09/2015.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Da janela do meu carro


Acordei pela manhã com um rápido beijo com gosto de café e batom sabor morango. Era assim todas as manhãs quando saía para o trabalho e Darlene vinha à nossa cama me acordar. Porém hoje o dia seria diferente ou igual como em todos os anos. Dois de novembro, dia de finados.
- O café tá pronto, é só se servir. Vou buscar minha mãe pra gente ir ao cemitério.
Detestava este dia. Não era de costume mas com a vó Sônia, iríamos de carro.
Levantei – me, tomei banho e depois de tomar um gole de café, fui ao quarto da Carol. Passei a mão em se rosto e ela resmungou, pois minha mão estava gelada.
Da janela da sala vi a vó Sônia – é como eu chamo a minha sogra – entrar no carro. Como em todo dia de finados, uma garoa fininha caía lá fora.
- Você já poderia ter tirado o carro, né bem?! - disse eu à Darlene.
- Bom dia, pelo menos!
- Bom dia, vô Soninha – disse à vovó, sem ligar para Darlene.
- Êta feriado – pensei comigo - esse é um dia em que no dia seguinte a gente vira um trapo, e que a gente pensa que é nada e por aí vai.
Chegamos à porta do cemitério, e uma fila de carros nos esperava.
- Meus Deus, é fila pra tudo.
- Não reclama vai – me disse Darlene batendo a porta do carro.
- Onde você vai Darlene?
- Vou comprar as flores, a gente se encontra lá.
Olhei pelo retrovisor do carro e vi vovó Soninha soando o nariz com o lenço do vô Alfredo. Vovô tirava o lenço do bolso detrás das calças, não sei quantas vezes por dia, aquele mesmo lenço xadrez que parecia ser o único.
Vovô – era assim que chamava meu sogro – havia falecido fazia dois meses e vovó não desgrudava do tal lenço.
Aos poucos, adentrávamos no cemitério. A guarda municipal, assegurava todos que estavam por lá. Policiais também circulavam a área mas eram do Coral da Polícia Militar de São Paulo que se apresentam no Mausoléu todos os anos em reverencia à memória dos policiais mortos no cumprimento do dever.
O tempo havia estiado e um raio de sol me deixou mais alegre. Quase pensei em desistir, mas vendo a vovó no banco de trás, realmente não teria jeito.
Aos poucos, os carros acomodavam – se estacionando nas ruas estreitas e as pessoas, queixavam – se:
- Que absurdo todos esse carros aqui dentro que não tem nem como a gente andar direito.
Não eram só os carros, haviam poças d' água por todo o cemitério e isso também dificultava a circulação dos visitantes.
- Como está isso! - disse eu em voz alta.
- O quê?
- Eu disse que estamos quase chegando vovó – respondi.
E enquanto o quase não chegava, fui lendo através da janela do carro, as placas com datas de nascimento e de morte e nomes de famílias como
Oliveira, Castro, Bauducci, importantes nomes dentro da sociedade.
O que me chamou a atenção foi de uma placa com o dia e o mês do meu nascimento: 11 de agosto. Porém o ano era de 1.886.
- Olha vovó, a data do meu nascimento – falei apontando para a placa que vi da janela do meu carro.
- O quê?
Entre o ano do meu nascimento com o do falecido havia calculado a diferença de 72 anos.
- 1.958 menos 1.886 igual a 72 anos.
- O quê?
- Nada não vovó.
E segui os cálculos: 1.886 pra 2.015.
- Noooosssa, ele ou ela nasceu à 129 anos atrás.
- O que vocề disse filho?
- Nada não vó. É uma pessoa que nasceu há 129 anos atrás, tá enterrada aqui neste cemitério. Como é antigo aqui né vó?!
Finalmente havíamos chegado. Estacionei o carro o mais próximo que pude do túmulo, e mais uma quadra deixaria vovó bem à porta.
Avistei Darlene colocando o vaso de flores amarelas sobre o túmulo. Ajudei vovó a sair do banco detrás do carro e vovó já procurava um lugar para se sentar.
- Darlene, não vamos demorar por favor. Aliás onde é o banheiro?
Eu estava apertadíssimo.
- Na administração - respondeu Darlene, apontando em direção à porta principal do cemitério.
Passei pela guarda e um rapaz também perguntava onde ficava a administração.
Resolvi falar com ele:
- Você também procura pela administração?
- É. A guarda disse que é nessa direção virando à direita.
- Você também vai ao banheiro?
- Não, vou perguntar onde é o túmulo da família dos meus avós que se esqueceram onde fica.
- Ah!
Chegamos à administração que estava lotada. Logo avistei a porta do banheiro.
Na volta ao túmulo onde Darlene e vovó estavam, coisas estranhas ocorreram. Percebi um senhor sentado sobre um dos túmulos recitando alguns versos que eu acreditava ser de Mário Quintana:
Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?
Já, uma outra senhora que passava pelos túmulos, repetia:
São todos abençoados
São todos abençoados
E eu pensava com os meus botões, a maneira com que cada pessoa homenageava seus entes queridos.
De repente como do nada, uma voz chegou aos meus ouvidos:
Se dez vida eu tivesse, dez vida eu daria”.
- Quem disse isso? - perguntei procurando por alguém que estivesse ali por perto.
- Sou eu! Não foram essas as palavras de Tiradentes antes de morrer enforcado em praça pública no ano de 1.792?
A placa estava lá, bem debaixo do pé dele: 11/08/1.886.
- Você vê? Nascemos no mesmo ano e agora estamos aqui.

Custou a entender do que se tratava, mas percebi que era “coisa do além” e assim tratei de sair dali o mais rápido possível.
- Ei onde você vai? - ele me perguntou.
Sem que eu olhasse para trás, ouvi ele dizer:
- Quer saber, vou embora também.
Virando as costas para ver para onde ele estava indo, reparei que ele havia sumido para dentro do túmulo através da porta.
Suando frio, cheguei onde vovó e Darlene estavam. Assim que contei essa história para Darlene, ela não acreditou e disse que eu havia bebido.
Depois que o susto passou, tudo o que sei é que às vezes, não só em dia de finados mas sempre que eu posso, dou uma passadinha no túmulo do falecido Homero da Cunha, que agora sei o nome, e fico a espera de que ele um dia apareça para a gente quem sabe, bater um papo.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Espelho quebrado


Mary Anne chega tarde da faculdade. Estuda música. Quer ser baixista. Gosta do clássico mas prefere o rock. Vai entender….
Sonha em tocar numa dessas bandas que fazem sucesso.
O namorado é baterista. Anda com as bateras sempre nas mãos, quando não, enfiadas nas calças jeans, que está sempre descendo da cintura pernas abaixo.
Naquela tarde ela e Frederico brigaram feio. Tudo por causa da Susi, única irmã e mais velha que ele. Mary Anne não a suporta. Fora os olhares que ela lança sobre a figura de uma guitarra tatuada num de seus braços. Chega a sentir ciúmes por causa disso. Susi reprova a tatuagem.
Brigou com os pais, mas um amigo do Fred se propôs a fazer a tatuagem de graça! O barato saiu caro
Fora a dor que sentiu, ficou uma semana sem o celular, só por castigo.
Isso é só inveja! - disse Mary à Frederico.

Para quê ela foi dizer isso. Fred, ah!, subiu pelas paredes.
Todos os três iam ao cinema, mas o programa “melou”. Se fosse somente ela e o namorado….
Mas porquê sempre a Susi no caminho dela.
Chegando em casa, Mary Anne pegou a guitarra. E no volume mais alto, tocou a nota mais alta da escala musical.
De repente, o espelho quebrou. Os estilhaços voaram pelo quarto e quase acertou o rosto dela. Assutada tirou a guitarra do seu pescoço. A nota, foi fatal!
Mary Anne quase se arrependeu, se não fosse pela raiva.
A mãe entrou no quarto para ver o que havia acontecido, mas muito mais tarde do que ela imaginou. Pegou no sono e acordou no dia seguinte. Dona Geórgia recolheu os cacos de vidros espalhados na noite anterior. Foi como havia imaginado.
Dormiu a noite inteirinha e levantou – se no dia seguinte. Foi quando calçou o All Star rosa, que percebeu um pedaço do espelho.
Pegou – o com as pontas dos dedos para não se cortar. Perguntou – se como foi que aconteceu aquilo. O pequeno espelho onde refletia somente o rosto e que ficava atrás porta, por quantas vezes, batia aquela porta do quarto e nunca que quebrou o espelho?!
No dia seguinte comentou com sua melhor amiga Bernadete o que ocorreu.
Deve ser um golpe de ar! – comentou Bernadete
Foi sim. Um golpe de azar, isso sim. Agora são sete anos que eu tenho de azar pela frente.
Bem, com azar ou sem azar, Mary Anne foi para a faculdade. O professor entrou na sala de audição. Sentindo – se poderosa com o que aconteceu enfrentou mais um clássico, mas ela é puro rock, pode crer….

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Correu... bateu... morreu...


 100/ 120/ 180 km por hora.
É pouco para quem gosta de velocidade. Até onde ele pudesse correr, este é o seu limite. Radar não existe para ele, impunidade tão pouco. Naquele dia porém, achei que eu fosse morrer.

Eu no portão de casa, ele passou a pé:
- Bom dia vizinho.
- Bom dia Fausto – achando que nunca me cumprimentaria, apesar de sermos vizinhos há bastante tempo.
Fausto, asfalto, fast, rápido... Me passou essa bobeira pela minha cabeça.
Ouvia falar dele e as peripécias na direção do carro, os cavalos de paus que ele dava quando era mais novo com o carro do pai, aqui na rua, e a reclamação de vizinhos por causa das crianças que brincavam na calçada: um perigo.
Sabia o nome dele, mas ele não sabia o meu.
- Prazer, me chamo Henrique ao seu dispor.
- Pois é né. Somos vizinhos e nunca nos falamos – dizendo e agitando o molho de chaves na mão, para que eu ouvisse o barulho, chamando minha atenção para o carro estacionado do outro lado da calçada.
- Gostou? É um Range Rover Sport.
Pelo pouco que eu sei vi tratar – se de um motor diesel.
- Qual a velocidade que ele faz? - perguntei curioso.
- Máxima de 210 km por hora. Gostaria de dar uma volta comigo? Preciso ir até Sorocaba e entregar uma mercadoria para um cliente.
Não pensei duas vezes e aceitei o convite.
- Sabe, sou gerente de um grande laboratório farmacêutico e estou me dando bem.
Entrei no carro e a lavanda de desodorizador para automóvel, me agradou. Bancos revestidos em couro, sentei atrelando o cinto de segurança. Ele fez o mesmo, dando a partida. Ligou o condicionador de ar e me senti a vontade, muito confortável, de certo que faríamos uma excelente viagem, uma sensação boa.
Também vou e volto do trabalho de ônibus, e raras as vezes em que pego um táxi, somente mesmo para levar meus pais ao médico.
Na estrada, observei que o pé dele “calcou” no acelerador me parecendo depois, que o carro seguia sozinho pela estrada. Piloto automático?!
Uma das mãos na direção e outra no celular. Câmbio automático?!
Bem, brincadeiras a parte, minha apreensão aumentava a cada instante.
Há bem pouco tempo, eu também dirigia meu carro, porém devido o alto preço da gasolina e desempregado, precisei vendê – lo.
Assim como meu pai que foi quem me ensinou a dirigir, eu também, mesmo sem pegar no volante, ainda sei como dirigir. Por mais que mudem as leis de trânsito ou as altas tecnologias que aparecem a cada dia no setor de automóveis, sei a maneira correta na direção: as duas mãos no volante, atenção nos retrovisores, não ultrapassar faixas contínuas, etc, etc., é o mínimo.
Quem quiser que acredite: nunca bati o carro ou levei multa. Hoje as pessoas são imprudentes, não obedecem as leis , e o pior: abusam da bebida que contribui para muitos acidentes nas estradas e na cidade tambeḿ.
Voltando à viagem, ele fazia o trajeto e dirigia com uma mão só e a outra no celular, e o carro parecendo pedir mais velocidade, visto pelo barulho da rotação do motor:
Vruummmmmmmmvrummmmmmmmmvruuuummmm
- Mensagens? - gritando, pois o som que vinha de um clip que ele colocou para tocar no DVD desde que saímos, não daria para ele ouvir o que eu estava dizendo.
- Trata – se de um aplicativo que vai nos levar por um caminho mais curto.
- Tipo GPS? - lembrei, meio que fora da tecnologia.
Sou do tempo dos guias de rua e de mapas dentro do porta – luvas. Como é antigo: porta – luvas.
- Sim, vai nos levar rapidinho até lá – disse instantaneamente.
E assim durante a viagem, reparei uma, duas, três passadas de entradas para chegarmos à Sorocaba.
- Nossas estradas são bem sinalizadas – comentei.
De fato ninguém se perde. Estava tentando desviar os olhos dele do celular e para que ele pudesse prestar mais atenção no que estava à nossa frente.
- Já estamos chegando – disse – me.
Assim que ele disse “já estamos chegando”, uma carreta, voando pelo meu lado direito, logo dando o sinal do pisca, cortou a frente do carro para pegar a pista onde estávamos.
Em alta velocidade, Fausto ainda tentou reduzir a marcha, pisando menos no acelerador, porém a única saída foi jogar o Range Rover para cima do guardirreio.
Bateu...
Ao se recuperar do susto, mesmo com a cabeça no encosto do banco, girou a chave no contato: uma, duas vezes e mais uma vez.
- O motor não quer pegar? - perguntei me recuperando do susto.
- Não, morreu...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Do outro lado da rua


Vinha o senhor Abelardo com seu andar todo torto caminhando na calçada. Era por volta das 18:30 de domingo quando todos se recolheram da mesa naquela tarde para assistir ao programa Domingão e o quadro Dança dos Artistas. Minha família e vizinhos não perdiam a competição entre as celebridades.
Eu e meu cachorrinho Jolie, ficamos sentados ali mesmo, no lugar onde almocei o frango assado que minha mãe fez. Tia Mafalda trouxe a torta de palmito que eu adoro, e nosso vizinho, o senhor Honorato, junto à esposa, trouxeram o pudim e o vinho, que meu pai degustava e rodando a taça dizia que o vinho é a “bebida dos deuses”. Almoçávamos fora todos os domingos. Que eu digo fora, é na calçada de casa mesmo.
Sorvete de chocolate e creme, completava meu domingo.
Mas algo aconteceu naquele final de tarde. E mais outros domingos se sucederam com o mesmo fato. Tentei eu mesma resolver, pois se comentasse com alguém o que via, apenas diriam que eu estava ficando louca.
Nem com o senhor Abelardo eu comentei, mas para minha surpresa percebi que ele viu o que também vi durante vários finais de tardes de domingo.
Mas só de domingo? E sempre àquela hora em que todos se recolhiam para dentro de suas casas? Estranhei.
É a respeito de um salão de danças que existia numa velha casa agora meio que abandonada do outro lado da rua, enfrente a minha casa. Encontrava -se fechada por mais de quinze anos.
Minha mãe, por muitas vezes recolheu correspondências como cartas, boletos e extratos bancários, contas de água e luz, jornais e panfletos de ofertas de supermercado que jogavam quase toda a semana.
Ela dizia:
Eu recolho para não parecer uma casa abandonada.
Mas é uma casa abandonada, mãe. Ninguém entra nem sai há anos. – dizendo isso para que eu mesma pudesse me convencer do contrário, porque o que eu via nesse momento, a casa não parecia abandonada.
Mas voltando à mesa onde todos se retiraram e eu ficando só com meu cachorrinho Jolie, assim que o senhor Abelardo passou, fui à casa ver com meus próprios olhos, mais de pertinho mesmo, pois não acreditava no que via.
Pessoas chegavam ao portão da casa em todas as vezes, dançando, mas agora mais de perto, pude ouvir a música tocada ao fundo que me pareceu ser um charleston, onde assim fez sentido todo aquele movimento agitado dos dançarinos, que pareciam mais eram suas roupas estarem cheias de pulgas. Falavam e gesticulavam o tempo todo e discutiam algo.
Correndo para casa, me joguei no sofá. Jolie veio atrás de mim e quase tropecei nele.
- Vem Jolie, já pra casa – ordenei.

Fiquei apavorada.
Minha mãe e tia Mafalda torcendo para a atriz da novela das 6 horas ficar em primeiro lugar e levar um carro como prêmio, disse a mim mesma:
- Porquê não fiquei em casa?

Segunda – feira precisaria de coragem para ficar pronta de manhãzinha, para que quando a van viesse me buscar para ir à escola, era meu único pensamento.
Café tomado e um rápido beijo da minha mãe quando passou pelo corredor de volta à cama dela para dormir mais uns minutinhos. Esperei a van chegar sentada no jardim. Não poderia me atrasar, senão a dona Natália a dona da van - apressadinha do jeito que ela é - buzinaria sem parar, acordando todo mundo e daí viria a reclamação dos vizinhos.
Surge o senhor Abelardo, cabelo molhado, de banho tomado carregando sua marmita embrulhada num pano de prato, marmita essa feita pela cozinheira do bar da esquina – pressuposto - disposto a trabalhar, após anos estar desempregado.
- O coitado não fica em emprego nenhum por causa da bebida - comentou minha mãe uma vez.
Cumprimentei o senhor Abelardo com um breve sorriso:
- Bom dia, senhor Abelardo, tudo bem?
- Bom dia menina.
- Tô eu aqui esperando a van da escola.
- Você viu a festança de ontem? “Tava” de arromba.
Quando eu ouvi ele dizer isso, até tossi! Dei risada quando ouvi a palavra “arromba”, tão antiga aos meus ouvidos….
- De arromba, eu não sei mas o almoço de domingo estava gostoso.
- Não é do almoço que estou falando, é da casa enfrente à sua – apontando para o outro lado da rua.
- Como assim? - me fazendo de desentendida - essa casa está fechada há anos.
- Imagina fechada! E que festança – repetiu.
A van chegou e dei um breve tchau.
- Depois nos falamos senhor Abelardo.
- Bom estudo, menina.
De fato toda essa conversa me deixou intrigada, mas fiquei para entender essa conversa no dia seguinte quando o senhor Abelardo passaria pela manhã.
- Bom dia senhor Abelardo, gostaria de falar sobre a conversa de ontem.
- Bom dia Deise.
- O que o senhor vê é o que eu vejo dentro daquela casa? - perguntei.
- O que você vê naquela casa?
- Pessoas que falam e dançam parecendo se divertir – era o que eu achava.
- Sim, mas reparei que não passam do portão pra rua. Ficam sempre dentro da casa.
- É, o portão parece estar emperrado, então voltam lá pra dentro. Então disse:
- Fantasmas.
- Do outro lado da rua? - admirou - se.
- Esta casa encontra – se fechada há anos. Os donos não moram mais aí. Minha mãe me contou que nesta casa existia um salão de dança, mas tem uns quinze anos. Morreram pessoas aí dentro por causa de uma explosão num botijão de gás – ao dizer isso, engoli seco.
- O que você está me dizendo, menina...
- É isso, morreram o professor e a esposa que viviam e davam aulas de dança e alguns alunos. Minha mãe vira e mexe ouvia o som do charleston, sabe aquela dança da década de 20: tã tã tã tã – e gesticulando os dedos para o ar para que ele entendesse o ritmo da dança do qual eu falava.
- Tá, tá menina. E você acredita em fantasmas?
- Eu, bem... eu não? – respondi com ar de cínica que só eu sei fazer, achando que ele pudesse pensar que sou uma louca, apesar de ele ver o que eu também via.
Bom, acreditando ou não em fantasmas, pensei em tirar essa história a limpo.
Como? Indo no próximo domingo até o portão da casa, depois que todos se recolhessem para assistir a Dança dos Artistas no programa Domingão.
Emfim chegou o dia. Atravessei para o outro lado da rua e dei de cara com o que eu supunha serem fantasmas.
Com o som alto tocando o charleston, aproximaram – se do portão. De pronto e era essa a minha intenção, foi abrir o portão. Todo enferrujado, se via que a lingueta da fechadura estava emperrada, me vi desesperada mas para minha surpresa, o portão se abriu sem que eu fizesse o mínimo esforço.
Lembrei das várias placas de imobiliárias onde ficaram penduradas na fachada da casa e os dizeres de vende – se. Porém a casa nunca foi vendida ou alugada, até onde eu soubesse.
Nosso bairro crescia com empreendimentos de construtoras famosas como a Roberto Dias, mas voltando ao que interessa, ao portão nesse caso:
Consegui, que alívio – dizendo em voz alta.
Não acreditava.
Ao som de charleston, em seus trajes de típicos da época, os dançarinos pareciam agora mais felizes com o que eu acabara de fazer.
Um dos dançarinos passando por mim, me disse:
Obrigado Deise, em nome de todos. Esperamos muitos até você chegar para abrir o portão.
QUASE DESMAIEI... ao ouvir o que ele disse. Então era isso, estavam presos ali à espera de que um dia eu abrisse aquele portão, apenas um simples gesto de atravessar e ir para o outro lado da rua. ME SENTI CULPADA, naquele momento.
- Agora seremos eternos e dançaremos pelo resto de nossas vidas – completou o fantasma.
Acompanhei os movimentos num frenesi em que estavam, até chegarem ao meio da rua e sumirem.
Foi quando eu saí correndo trombando com o senhor Abelardo:
- Onde vai com tanta pressa?
- O senhor viu senhor Abelardo o que eu vi?
- Vi e é por isso que eu bebo – disse dando altas gargalhadas.
Eu, não achei graça nenhuma.
Assim chegou a segunda – feira. Da janela do meu quarto ouvi um barulho e fui olhar. Era um trator que veio demolir a casa do outro lado da rua para construir mais um prédio no nosso bairro.

E não paro por aqui: naquele domingo cheguei em casa, sentei no sofá e minha mãe estava com a tia Mafalda torcendo pela atriz ganhar o carro como prêmio.
- O que é que ela dançou para levar o prêmio?
- Acho que charleston...

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Sob o fogo de um dragão


Era tarde da noite quando disputei mais uma vez a mesa da cozinha com o ferro de passar roupa. Estudava pela manhã e quando chegava a tarde ou logo a noitinha, era cada vez mais difícil ou quase impossível ficar ali apertada no cantinho da mesa, com meus livros, lápis e cadernos.
Dá licença que eu quero passar roupa – pedia minha mãe que eu saísse dali, mas eu teimosa ficava no cantinho da mesa vendo ela passar aqueles montes de roupas.
Via minha mãe esticar por sobre a mesa, o velho cobertor que um dia na cama, agasalhou meu irmão. Assim ela esticava um outro pano branco feito de algodão por sobre o cobertor. Criteriosamente ligava o ferro de passar à tomada e com um copo cheio d’água, ela o enchia até o limite a fim de produzir o vapor necessário para o alisamento da roupa.
Um dia, saí com essa:
Mãe, parece um dragão seu ferro de passar – olhando para ela, e vendo escorrer fios de suor na testa, devido a quentura do ferro.
A cozinha, ficava quente feito uma sauna, mas eu adorava o cheiro do amaciante que vinha da roupa quando ela passava o ferro.
Eram montanhas de roupas que minha mãe lavava além de passar. Carros estacionavam a noitinha enfrente a nossa casa e tocando a campainha, gritavam lá debaixo:
E aí dona Sofia, a roupa está pronta?
Prontinha! — respondia minha mãe, descendo as escadas correndo para pegar os trocados. As roupas eram cuidadosamente embrulhadas em lençóis brancos, lençóis da cama de casal dela.
Contos de fadas, em que noites, o senhor Libério, meu velho pai taxista num ponto de táxi pertinho de casa, trabalhou durante anos – contava – nos à beira da cama, até que dormíssemos.
Castelos, príncipes e princesas, florestas, 
montanhas e dragões.
Meu pai havia falecido e minha mãe - uma simples dona de casa - precisou arrumar um serviço fora. Foi quando surgiu a ideia de trabalhar como lavadeira e passadeira, pois era só o que sabia fazer. Era o jeito de nos sustentar, eu e meu irmão, que também precisou mudar de vida largando os estudos para trabalhar como garçom em restaurante.
Sendo eu a mais nova, foram os dois que arcaram com os meus estudos. Fiz curso técnico de enfermagem e assim que minha mãe ficou doente, fui eu quem cuidou dela, quando veio a falecer.
Então foi que nesse meio tempo, encontrei um príncipe encantado.  
Com a vinda do meu primeiro filho, cuidei dos afazeres da casa enquanto meu marido trabalhava.
Assim como minha mãe sempre fez, sou eu quem passo a roupa de casa.
Então uma tarde quando estiquei por sobre a mesa, o velho cobertor que um dia na cama, agasalhou meu irmão, colocando um outro pano branco feito de algodão por sobre o cobertor e criteriosamente ligando o ferro à tomada, lembrei da minha mãe que sustentou dois filhos, eu e meu irmão, sob o fogo de um dragão.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Lurdinha


Não vou esquecer o que aconteceu com a Lurdinha naquela tarde na escola numa dessas brincadeiras de trocar coisas entre a gente”.
Margarida, a melhor amiga da Lurdinha.

- Que brincadeira é essa? - perguntou a professora quando ouviu Margarida dizer para a Cidinha que ia trocar a blusa de lã dela com a Lurdinha.
- A Lurdinha professora, pediu para trocar a minha blusa pelo estojo de lápis de cor dela. É uma brincadeira que a Lurdinha inventou na hora do recreio - explicou Margarida.
A professora deu de ombros como se não se importasse com o que acabara de ouvir, deu as costas aos alunos da sala de aula e continuou a escrever na lousa, um poema do “Livro do Desassossego” do conhecido poeta português:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa

Essas trocas aconteciam de um dia para o outro, chegava a virar uma feira de troca de coisas entre os alunos da escola. Rodrigo trocava a bola de futebol pelo moletom do Anderson. Ana Maria trocava a boneca Barbie pelo batom gloss da Fabiana, e assim ficavam todos felizes com suas trocas.
Muitas vezes, as mães vinham reclamar para o diretor da escola por causa dos filhos que apareciam em casa, com coisas dos colegas e que não lhes pertenciam.
- Vai já devolver pro dono o que você trocou - mandava a mãe do Celso.
- Não quero nada de ninguém aqui em casa - esbravejava a mãe da Valquíria.
- A professora sabe disso? - disse certa vez Margarida para a Lurdinha o que a mãe do Rodrigo disse quando apareceu com o moletom do Anderson em casa.
- Se liga, isso aconteceu com o Rodrigo porque a mãe dele é uma chata – respondeu Lurdinha para Margarida.
Acontece, que um dia, Lurdinha levou o livro da Branca de Neve e os Sete Anões que ganhou do seu padrinho de presente de aniversário, para trocar com uma medalhinha que ela viu pendurada no pescoço da Denise e queria usar por um tempo a medalhinha.
- Você quer trocar o meu livro da Branca de Neve por essa medalhinha aí pendurada no seu pescoço? - perguntou Lurdinha apontando para a medalhinha no pescoço da Denise.
Denise foi logo dizendo:
- Não! - para Lurdinha.
Mas Lurdinha insistiu tanto, mas tanto, que Denise topou trocar o livro pela medalhinha. Disse para a Lurdinha, que iria ler o livro em cinco dias e assim, sua mãe nem sentiria falta da medalhinha em seu pescoço.
O que Lurdinha não contava e para espanto dela, é que Denise não devolveria o livro da Branca de Neve e os Sete Anões no dia combinado.
Mas Lurdinha querendo a medalhinha de volta disse:
- É mas não é bem assim Denise. Você tem que devolver meu livro. Trato é trato. E se sua mãe descobrir, vai te dar a maior raspança e mais uma reclamação com o diretor.
- Não, ele é meu; eu quero ele pra mim...
Mas Lurdinha tenta entender, que é só uma brincadeira: é uma troca?!
Denise assim que balançou a cabeça como dizendo um não, Lurdinha então disse:
- Olha só o que eu faço com a sua medalhinha...
Há essa altura, a escola inteira parou na hora do recreio para ver o bate boca entre as duas, ou melhor, o bocão da Lurdinha engolindo a medalhinha que foi da Denise.
Ninguém acreditou no que a Lurdinha havia feito; foi um espanto geral.
- Engoliu a medalhinha! - admirou a turma envolta da discussão.

Como melhor amiga da Lurdinha, nunca pensei que ela pudesse se estrepar, mas eu bem que avisava ela”
Comentou na época, Margarida para os colegas da sala de aula.

- Esse negócio de trocar as coisas entre a gente, um dia não vai dar certo Lurdinha.

O tempo passa e a vida segue em frente. Uns começaram suas carreiras, outros apenas se casam e alguns como eu e a Lurdinha, ficamos pra titia. Nos tornamos amigas depois que saímos da escola, fizemos a faculdade juntas; chegamos a trabalhar numa mesma empresa. Viajamos e até dividimos um namorado, mas isso é uma outra história.
Um dia, Lurdinha me ligou para que eu a acompanhasse em uma consulta médica. Queixavasse de dor nas costas e nos rins.
- Sim, é para abrir o exame Margarida, você me acompanha?
- Tudo bem Lurdinha, eu vou ao médico com você.
Chegamos ao consultório para abrir o exame com o ortopedista.
Assim que o médico abriu o exame, foi constatado no raio X, uma pequena mancha que me fez lembrar toda essa historinha de infância.
- Bom – disse o doutor – é apenas um cálculo renal, está bem aqui - apontando para a chapa - agora, você terá que ir ao especialista para tirar esse cálculo que é mais conhecido como pedra nos rins.
Lurdinha saiu do consultório e a primeira coisa que falou, foi sobre a medalhinha.
- E pensar que parecia uma medalhinha, não parecia Margarida?
- É mesmo Lurdinha. É o tamanho da medalhinha da Denise que um dia lá na escola, você engoliu por causa de uma troca infeliz com o seu livro da estória da Branca de Neve e os Sete Anões que você ganhou do seu padrinho, na data do seu aniversário.
- Você acredita que depois daquele dia, nunca mais troquei nada com ninguém?
- Também pudera Lurdinha, você aprendeu a lição.