sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Correu... bateu... morreu...


 100/ 120/ 180 km por hora.
É pouco para quem gosta de velocidade. Até onde ele pudesse correr, este é o seu limite. Radar não existe para ele, impunidade tão pouco. Naquele dia porém, achei que eu fosse morrer.

Eu no portão de casa, ele passou a pé:
- Bom dia vizinho.
- Bom dia Fausto – achando que nunca me cumprimentaria, apesar de sermos vizinhos há bastante tempo.
Fausto, asfalto, fast, rápido... Me passou essa bobeira pela minha cabeça.
Ouvia falar dele e as peripécias na direção do carro, os cavalos de paus que ele dava quando era mais novo com o carro do pai, aqui na rua, e a reclamação de vizinhos por causa das crianças que brincavam na calçada: um perigo.
Sabia o nome dele, mas ele não sabia o meu.
- Prazer, me chamo Henrique ao seu dispor.
- Pois é né. Somos vizinhos e nunca nos falamos – dizendo e agitando o molho de chaves na mão, para que eu ouvisse o barulho, chamando minha atenção para o carro estacionado do outro lado da calçada.
- Gostou? É um Range Rover Sport.
Pelo pouco que eu sei vi tratar – se de um motor diesel.
- Qual a velocidade que ele faz? - perguntei curioso.
- Máxima de 210 km por hora. Gostaria de dar uma volta comigo? Preciso ir até Sorocaba e entregar uma mercadoria para um cliente.
Não pensei duas vezes e aceitei o convite.
- Sabe, sou gerente de um grande laboratório farmacêutico e estou me dando bem.
Entrei no carro e a lavanda de desodorizador para automóvel, me agradou. Bancos revestidos em couro, sentei atrelando o cinto de segurança. Ele fez o mesmo, dando a partida. Ligou o condicionador de ar e me senti a vontade, muito confortável, de certo que faríamos uma excelente viagem, uma sensação boa.
Também vou e volto do trabalho de ônibus, e raras as vezes em que pego um táxi, somente mesmo para levar meus pais ao médico.
Na estrada, observei que o pé dele “calcou” no acelerador me parecendo depois, que o carro seguia sozinho pela estrada. Piloto automático?!
Uma das mãos na direção e outra no celular. Câmbio automático?!
Bem, brincadeiras a parte, minha apreensão aumentava a cada instante.
Há bem pouco tempo, eu também dirigia meu carro, porém devido o alto preço da gasolina e desempregado, precisei vendê – lo.
Assim como meu pai que foi quem me ensinou a dirigir, eu também, mesmo sem pegar no volante, ainda sei como dirigir. Por mais que mudem as leis de trânsito ou as altas tecnologias que aparecem a cada dia no setor de automóveis, sei a maneira correta na direção: as duas mãos no volante, atenção nos retrovisores, não ultrapassar faixas contínuas, etc, etc., é o mínimo.
Quem quiser que acredite: nunca bati o carro ou levei multa. Hoje as pessoas são imprudentes, não obedecem as leis , e o pior: abusam da bebida que contribui para muitos acidentes nas estradas e na cidade tambeḿ.
Voltando à viagem, ele fazia o trajeto e dirigia com uma mão só e a outra no celular, e o carro parecendo pedir mais velocidade, visto pelo barulho da rotação do motor:
Vruummmmmmmmvrummmmmmmmmvruuuummmm
- Mensagens? - gritando, pois o som que vinha de um clip que ele colocou para tocar no DVD desde que saímos, não daria para ele ouvir o que eu estava dizendo.
- Trata – se de um aplicativo que vai nos levar por um caminho mais curto.
- Tipo GPS? - lembrei, meio que fora da tecnologia.
Sou do tempo dos guias de rua e de mapas dentro do porta – luvas. Como é antigo: porta – luvas.
- Sim, vai nos levar rapidinho até lá – disse instantaneamente.
E assim durante a viagem, reparei uma, duas, três passadas de entradas para chegarmos à Sorocaba.
- Nossas estradas são bem sinalizadas – comentei.
De fato ninguém se perde. Estava tentando desviar os olhos dele do celular e para que ele pudesse prestar mais atenção no que estava à nossa frente.
- Já estamos chegando – disse – me.
Assim que ele disse “já estamos chegando”, uma carreta, voando pelo meu lado direito, logo dando o sinal do pisca, cortou a frente do carro para pegar a pista onde estávamos.
Em alta velocidade, Fausto ainda tentou reduzir a marcha, pisando menos no acelerador, porém a única saída foi jogar o Range Rover para cima do guardirreio.
Bateu...
Ao se recuperar do susto, mesmo com a cabeça no encosto do banco, girou a chave no contato: uma, duas vezes e mais uma vez.
- O motor não quer pegar? - perguntei me recuperando do susto.
- Não, morreu...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Do outro lado da rua


Vinha o senhor Abelardo com seu andar todo torto caminhando na calçada. Era por volta das 18:30 de domingo quando todos se recolheram da mesa naquela tarde para assistir ao programa Domingão e o quadro Dança dos Artistas. Minha família e vizinhos não perdiam a competição entre as celebridades.
Eu e meu cachorrinho Jolie, ficamos sentados ali mesmo, no lugar onde almocei o frango assado que minha mãe fez. Tia Mafalda trouxe a torta de palmito que eu adoro, e nosso vizinho, o senhor Honorato, junto à esposa, trouxeram o pudim e o vinho, que meu pai degustava e rodando a taça dizia que o vinho é a “bebida dos deuses”. Almoçávamos fora todos os domingos. Que eu digo fora, é na calçada de casa mesmo.
Sorvete de chocolate e creme, completava meu domingo.
Mas algo aconteceu naquele final de tarde. E mais outros domingos se sucederam com o mesmo fato. Tentei eu mesma resolver, pois se comentasse com alguém o que via, apenas diriam que eu estava ficando louca.
Nem com o senhor Abelardo eu comentei, mas para minha surpresa percebi que ele viu o que também vi durante vários finais de tardes de domingo.
Mas só de domingo? E sempre àquela hora em que todos se recolhiam para dentro de suas casas? Estranhei.
É a respeito de um salão de danças que existia numa velha casa agora meio que abandonada do outro lado da rua, enfrente a minha casa. Encontrava -se fechada por mais de quinze anos.
Minha mãe, por muitas vezes recolheu correspondências como cartas, boletos e extratos bancários, contas de água e luz, jornais e panfletos de ofertas de supermercado que jogavam quase toda a semana.
Ela dizia:
Eu recolho para não parecer uma casa abandonada.
Mas é uma casa abandonada, mãe. Ninguém entra nem sai há anos. – dizendo isso para que eu mesma pudesse me convencer do contrário, porque o que eu via nesse momento, a casa não parecia abandonada.
Mas voltando à mesa onde todos se retiraram e eu ficando só com meu cachorrinho Jolie, assim que o senhor Abelardo passou, fui à casa ver com meus próprios olhos, mais de pertinho mesmo, pois não acreditava no que via.
Pessoas chegavam ao portão da casa em todas as vezes, dançando, mas agora mais de perto, pude ouvir a música tocada ao fundo que me pareceu ser um charleston, onde assim fez sentido todo aquele movimento agitado dos dançarinos, que pareciam mais eram suas roupas estarem cheias de pulgas. Falavam e gesticulavam o tempo todo e discutiam algo.
Correndo para casa, me joguei no sofá. Jolie veio atrás de mim e quase tropecei nele.
- Vem Jolie, já pra casa – ordenei.

Fiquei apavorada.
Minha mãe e tia Mafalda torcendo para a atriz da novela das 6 horas ficar em primeiro lugar e levar um carro como prêmio, disse a mim mesma:
- Porquê não fiquei em casa?

Segunda – feira precisaria de coragem para ficar pronta de manhãzinha, para que quando a van viesse me buscar para ir à escola, era meu único pensamento.
Café tomado e um rápido beijo da minha mãe quando passou pelo corredor de volta à cama dela para dormir mais uns minutinhos. Esperei a van chegar sentada no jardim. Não poderia me atrasar, senão a dona Natália a dona da van - apressadinha do jeito que ela é - buzinaria sem parar, acordando todo mundo e daí viria a reclamação dos vizinhos.
Surge o senhor Abelardo, cabelo molhado, de banho tomado carregando sua marmita embrulhada num pano de prato, marmita essa feita pela cozinheira do bar da esquina – pressuposto - disposto a trabalhar, após anos estar desempregado.
- O coitado não fica em emprego nenhum por causa da bebida - comentou minha mãe uma vez.
Cumprimentei o senhor Abelardo com um breve sorriso:
- Bom dia, senhor Abelardo, tudo bem?
- Bom dia menina.
- Tô eu aqui esperando a van da escola.
- Você viu a festança de ontem? “Tava” de arromba.
Quando eu ouvi ele dizer isso, até tossi! Dei risada quando ouvi a palavra “arromba”, tão antiga aos meus ouvidos….
- De arromba, eu não sei mas o almoço de domingo estava gostoso.
- Não é do almoço que estou falando, é da casa enfrente à sua – apontando para o outro lado da rua.
- Como assim? - me fazendo de desentendida - essa casa está fechada há anos.
- Imagina fechada! E que festança – repetiu.
A van chegou e dei um breve tchau.
- Depois nos falamos senhor Abelardo.
- Bom estudo, menina.
De fato toda essa conversa me deixou intrigada, mas fiquei para entender essa conversa no dia seguinte quando o senhor Abelardo passaria pela manhã.
- Bom dia senhor Abelardo, gostaria de falar sobre a conversa de ontem.
- Bom dia Deise.
- O que o senhor vê é o que eu vejo dentro daquela casa? - perguntei.
- O que você vê naquela casa?
- Pessoas que falam e dançam parecendo se divertir – era o que eu achava.
- Sim, mas reparei que não passam do portão pra rua. Ficam sempre dentro da casa.
- É, o portão parece estar emperrado, então voltam lá pra dentro. Então disse:
- Fantasmas.
- Do outro lado da rua? - admirou - se.
- Esta casa encontra – se fechada há anos. Os donos não moram mais aí. Minha mãe me contou que nesta casa existia um salão de dança, mas tem uns quinze anos. Morreram pessoas aí dentro por causa de uma explosão num botijão de gás – ao dizer isso, engoli seco.
- O que você está me dizendo, menina...
- É isso, morreram o professor e a esposa que viviam e davam aulas de dança e alguns alunos. Minha mãe vira e mexe ouvia o som do charleston, sabe aquela dança da década de 20: tã tã tã tã – e gesticulando os dedos para o ar para que ele entendesse o ritmo da dança do qual eu falava.
- Tá, tá menina. E você acredita em fantasmas?
- Eu, bem... eu não? – respondi com ar de cínica que só eu sei fazer, achando que ele pudesse pensar que sou uma louca, apesar de ele ver o que eu também via.
Bom, acreditando ou não em fantasmas, pensei em tirar essa história a limpo.
Como? Indo no próximo domingo até o portão da casa, depois que todos se recolhessem para assistir a Dança dos Artistas no programa Domingão.
Emfim chegou o dia. Atravessei para o outro lado da rua e dei de cara com o que eu supunha serem fantasmas.
Com o som alto tocando o charleston, aproximaram – se do portão. De pronto e era essa a minha intenção, foi abrir o portão. Todo enferrujado, se via que a lingueta da fechadura estava emperrada, me vi desesperada mas para minha surpresa, o portão se abriu sem que eu fizesse o mínimo esforço.
Lembrei das várias placas de imobiliárias onde ficaram penduradas na fachada da casa e os dizeres de vende – se. Porém a casa nunca foi vendida ou alugada, até onde eu soubesse.
Nosso bairro crescia com empreendimentos de construtoras famosas como a Roberto Dias, mas voltando ao que interessa, ao portão nesse caso:
Consegui, que alívio – dizendo em voz alta.
Não acreditava.
Ao som de charleston, em seus trajes de típicos da época, os dançarinos pareciam agora mais felizes com o que eu acabara de fazer.
Um dos dançarinos passando por mim, me disse:
Obrigado Deise, em nome de todos. Esperamos muitos até você chegar para abrir o portão.
QUASE DESMAIEI... ao ouvir o que ele disse. Então era isso, estavam presos ali à espera de que um dia eu abrisse aquele portão, apenas um simples gesto de atravessar e ir para o outro lado da rua. ME SENTI CULPADA, naquele momento.
- Agora seremos eternos e dançaremos pelo resto de nossas vidas – completou o fantasma.
Acompanhei os movimentos num frenesi em que estavam, até chegarem ao meio da rua e sumirem.
Foi quando eu saí correndo trombando com o senhor Abelardo:
- Onde vai com tanta pressa?
- O senhor viu senhor Abelardo o que eu vi?
- Vi e é por isso que eu bebo – disse dando altas gargalhadas.
Eu, não achei graça nenhuma.
Assim chegou a segunda – feira. Da janela do meu quarto ouvi um barulho e fui olhar. Era um trator que veio demolir a casa do outro lado da rua para construir mais um prédio no nosso bairro.

E não paro por aqui: naquele domingo cheguei em casa, sentei no sofá e minha mãe estava com a tia Mafalda torcendo pela atriz ganhar o carro como prêmio.
- O que é que ela dançou para levar o prêmio?
- Acho que charleston...

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Sob o fogo de um dragão


Era tarde da noite quando disputei mais uma vez a mesa da cozinha com o ferro de passar roupa. Estudava pela manhã e quando chegava a tarde ou logo a noitinha, era cada vez mais difícil ou quase impossível ficar ali apertada no cantinho da mesa, com meus livros, lápis e cadernos.
Dá licença que eu quero passar roupa – pedia minha mãe que eu saísse dali, mas eu teimosa ficava no cantinho da mesa vendo ela passar aqueles montes de roupas.
Via minha mãe esticar por sobre a mesa, o velho cobertor que um dia na cama, agasalhou meu irmão. Assim ela esticava um outro pano branco feito de algodão por sobre o cobertor. Criteriosamente ligava o ferro de passar à tomada e com um copo cheio d’água, ela o enchia até o limite a fim de produzir o vapor necessário para o alisamento da roupa.
Um dia, saí com essa:
Mãe, parece um dragão seu ferro de passar – olhando para ela, e vendo escorrer fios de suor na testa, devido a quentura do ferro.
A cozinha, ficava quente feito uma sauna, mas eu adorava o cheiro do amaciante que vinha da roupa quando ela passava o ferro.
Eram montanhas de roupas que minha mãe lavava além de passar. Carros estacionavam a noitinha enfrente a nossa casa e tocando a campainha, gritavam lá debaixo:
E aí dona Sofia, a roupa está pronta?
Prontinha! — respondia minha mãe, descendo as escadas correndo para pegar os trocados. As roupas eram cuidadosamente embrulhadas em lençóis brancos, lençóis da cama de casal dela.
Contos de fadas, em que noites, o senhor Libério, meu velho pai taxista num ponto de táxi pertinho de casa, trabalhou durante anos – contava – nos à beira da cama, até que dormíssemos.
Castelos, príncipes e princesas, florestas, 
montanhas e dragões.
Meu pai havia falecido e minha mãe - uma simples dona de casa - precisou arrumar um serviço fora. Foi quando surgiu a ideia de trabalhar como lavadeira e passadeira, pois era só o que sabia fazer. Era o jeito de nos sustentar, eu e meu irmão, que também precisou mudar de vida largando os estudos para trabalhar como garçom em restaurante.
Sendo eu a mais nova, foram os dois que arcaram com os meus estudos. Fiz curso técnico de enfermagem e assim que minha mãe ficou doente, fui eu quem cuidou dela, quando veio a falecer.
Então foi que nesse meio tempo, encontrei um príncipe encantado.  
Com a vinda do meu primeiro filho, cuidei dos afazeres da casa enquanto meu marido trabalhava.
Assim como minha mãe sempre fez, sou eu quem passo a roupa de casa.
Então uma tarde quando estiquei por sobre a mesa, o velho cobertor que um dia na cama, agasalhou meu irmão, colocando um outro pano branco feito de algodão por sobre o cobertor e criteriosamente ligando o ferro à tomada, lembrei da minha mãe que sustentou dois filhos, eu e meu irmão, sob o fogo de um dragão.