Acordei
pela manhã com um rápido beijo com gosto de café e batom sabor
morango. Era assim todas as manhãs quando saía para o trabalho e
Darlene vinha à nossa cama me acordar. Porém hoje o dia seria
diferente ou igual como em todos os anos. Dois de novembro, dia de
finados.
-
O café tá pronto, é só se servir. Vou buscar minha mãe pra gente
ir ao cemitério.
Detestava
este dia. Não era de costume mas com a vó Sônia, iríamos de
carro.
Levantei
– me, tomei banho e depois de tomar um gole de café, fui ao quarto
da Carol. Passei a mão em se rosto e ela resmungou, pois minha mão
estava gelada.
Da
janela da sala vi a vó Sônia – é como eu chamo a minha sogra –
entrar no carro. Como em todo dia de finados, uma garoa fininha caía
lá fora.
-
Você já poderia ter tirado o carro, né bem?! - disse eu à
Darlene.
-
Bom dia, pelo menos!
-
Bom dia, vô Soninha – disse à vovó, sem ligar para Darlene.
-
Êta feriado – pensei comigo - esse é um dia em que no dia
seguinte a gente vira um trapo, e que a gente pensa que é nada e por
aí vai.
Chegamos
à porta do cemitério, e uma fila de carros nos esperava.
-
Meus Deus, é fila pra tudo.
-
Não reclama vai – me disse Darlene batendo a porta do carro.
-
Onde você vai Darlene?
-
Vou comprar as flores, a gente se encontra lá.
Olhei
pelo retrovisor do carro e vi vovó Soninha soando o nariz com o
lenço do vô Alfredo. Vovô tirava o lenço do bolso detrás das
calças, não sei quantas vezes por dia, aquele mesmo lenço xadrez
que parecia ser o único.
Vovô
– era assim que chamava meu sogro – havia falecido fazia dois
meses e vovó não desgrudava do tal lenço.
Aos
poucos, adentrávamos no cemitério. A guarda municipal, assegurava
todos que estavam por lá. Policiais também circulavam a área mas
eram do Coral da Polícia Militar de São Paulo que se apresentam no
Mausoléu todos os anos em reverencia
à memória dos policiais mortos no cumprimento do dever.
O
tempo havia estiado e um raio de sol me deixou mais alegre. Quase
pensei em desistir, mas vendo a vovó no banco de trás, realmente
não teria jeito.
Aos poucos, os carros
acomodavam – se estacionando nas ruas estreitas e as pessoas,
queixavam – se:
-
Que absurdo todos esse carros aqui dentro que não tem nem como a
gente andar direito.
Não
eram só os carros, haviam poças d' água por todo o cemitério e
isso também dificultava a circulação dos visitantes.
-
Como está isso! - disse eu em voz alta.
- O quê?
-
Eu disse que estamos quase chegando vovó – respondi.
E
enquanto o quase não chegava, fui lendo através da janela do carro,
as placas com datas de nascimento e de morte e nomes de famílias
como
Oliveira,
Castro, Bauducci, importantes nomes dentro da sociedade.
O
que me chamou a atenção foi de uma placa com o dia e o mês do meu
nascimento: 11 de agosto. Porém o ano era de 1.886.
-
Olha vovó, a data do meu nascimento – falei apontando para a placa
que vi da janela do meu carro.
- O quê?
Entre
o ano do meu nascimento com o do falecido havia calculado a diferença
de 72 anos.
-
1.958 menos 1.886 igual a 72 anos.
- O quê?
- Nada não vovó.
E
segui os cálculos: 1.886 pra 2.015.
-
Noooosssa, ele ou ela nasceu à 129 anos atrás.
-
O que vocề disse filho?
-
Nada não vó. É uma pessoa que nasceu há 129 anos atrás, tá
enterrada aqui neste cemitério. Como é antigo aqui né vó?!
Finalmente
havíamos chegado. Estacionei o carro o mais próximo que pude do
túmulo, e mais uma quadra deixaria vovó bem à porta.
Avistei
Darlene colocando o vaso de flores amarelas sobre o túmulo. Ajudei
vovó a sair do banco detrás do carro e vovó já procurava um lugar
para se sentar.
- Darlene, não vamos
demorar por favor. Aliás onde é o banheiro?
Eu estava
apertadíssimo.
- Na administração -
respondeu Darlene, apontando em direção à porta principal do
cemitério.
Passei
pela guarda e um rapaz também perguntava onde ficava a
administração.
Resolvi falar com ele:
-
Você também procura pela administração?
-
É. A guarda disse que é nessa direção virando à direita.
- Você também vai ao
banheiro?
-
Não, vou perguntar onde é o túmulo da família dos meus avós que
se esqueceram onde fica.
- Ah!
Chegamos
à administração que estava lotada. Logo avistei a porta do
banheiro.
Na
volta ao túmulo onde Darlene e vovó estavam, coisas estranhas
ocorreram. Percebi um senhor sentado sobre um dos túmulos recitando
alguns versos que eu acreditava ser de Mário Quintana:
Eu, agora - que
desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca
deixo
De lembrar que te esqueci?
Já,
uma outra senhora que passava pelos túmulos, repetia:
São
todos abençoados
São
todos abençoados
E
eu pensava com os meus botões, a maneira com que cada pessoa
homenageava seus entes queridos.
De
repente como do nada, uma voz chegou aos meus ouvidos:
“Se
dez vida eu tivesse, dez vida eu daria”.
-
Quem disse isso? - perguntei procurando por
alguém que estivesse ali por perto.
-
Sou eu! Não foram essas as palavras de Tiradentes antes de morrer
enforcado em praça pública no ano de 1.792?
A
placa estava lá, bem debaixo do pé dele: 11/08/1.886.
-
Você vê? Nascemos no mesmo ano e agora estamos aqui.
Custou
a entender do que se tratava, mas percebi que era “coisa do além”
e assim tratei de sair dali o mais rápido possível.
-
Ei onde você vai? - ele me perguntou.
Sem
que eu olhasse para trás, ouvi ele dizer:
-
Quer saber, vou embora também.
Virando
as costas para ver para onde ele estava indo, reparei que ele havia
sumido para dentro do túmulo através da porta.
Suando
frio, cheguei onde vovó e Darlene estavam. Assim que contei essa
história para Darlene, ela não acreditou e disse que eu havia
bebido.
Depois
que o susto passou, tudo o que sei é que às vezes, não só em dia
de finados mas
sempre que eu posso, dou uma passadinha no túmulo do falecido Homero
da Cunha, que agora sei o nome, e fico a espera de que ele um dia
apareça para a gente quem sabe, bater um papo.